Se é certo que a catarata é uma condição que surge com o envelhecimento, não é menos verdade que as crianças não estão imunes a este tipo de alteração do cristalino. As causas podem ser muitas, e a visão pode ficar comprometida para toda a vida, se as alterações não forem detetadas e corrigidas em tempo útil. O rastreio desta patologia pode ser feito com o recurso ao teste do reflexo vermelho.
O cristalino é uma lente natural que existe no olho humano – por detrás da íris – e que permite focar a diferentes distâncias. Com o avançar da idade, o cristalino perde a elasticidade, mas também a transparência, imprescindível para uma visão com qualidade. A perda de transparência do cristalino é denominada catarata e a cirurgia é quase sempre a melhor solução quando existe compromisso da qualidade visual e interferência na realização das atividades diárias.
Mas a catarata nem sempre está associada ao envelhecimento e também pode aparecer mais precocemente, após traumatismos e cirurgias oculares, corticoterapia prolongada, miopia elevada… E pode aparecer em crianças, podendo desenvolver-se logo nos primeiros anos de vida e por isso se classifica de catarata congénita. As cataratas congénitas podem ser bilaterais, o que ocorre em 2/3 dos casos ou unilaterais. Segundo a Organização Mundial de Saúde cerca de 14 milhões de crianças sofrem de catarata congénita, com uma prevalência de 1 a 6 casos por 10 mil nascimentos em países economicamente desenvolvidos e 5 a 15 por 10 mil nascimentos nos países em desenvolvimento.
As causas para o aparecimento de catarata congénita incluem infeções intrauterinas do grupo TORCH (toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, herpes-zoster e sarampo), irradiação ou medicação durante a gravidez, causas genéticas ou metabólicas, mas, na grande maioria dos casos, a causa permanece desconhecida.
O grau de opacificação do cristalino é variável, podendo envolver todas as camadas (catarata total) ou apenas uma parte, dividindo-se em nuclear, lamelar, polar anterior, polar posterior, pulvurenta… Consequentemente a interferência da catarata no desenvolvimento visual também é variável. As opacidades pequenas, inferiores a 3 mm ou periféricas, e que permitem a passagem dos raios luminosos, podem ter consequências discretas no desenvolvimento do sistema visual da criança, podendo ser vigiadas e monitorizadas em consultas.
No entanto, as cataratas totais e as que apresentem opacidades superiores a 3mm, envolvendo parte central/ posterior do cristalino, podem induzir ambliopia grave por ausência/ diminuição significativa de estimulação visual no olho afetado, uma vez que os raios luminosos não atingem adequadamente a retina. As cataratas com estas características devem ser submetidas rapidamente a intervenção cirúrgica, sendo esta recomendada às 4-6 semanas de vida, em crianças com catarata unilateral e às 6-8 semanas de vida da criança, nas cataratas bilaterais.
O teste do reflexo vermelho
A deteção precoce da catarata congénita é por isso fundamental. O rastreio deve ser feito a todos os recém-nascidos, por clínicos gerais e pediatras, através da avaliação do reflexo vermelho. Este teste consiste na iluminação das 2 pupilas em simultâneo, a pelo menos 50 cm, e numa sala escura, geralmente com um oftalmoscópio direto. Também pode ser feito através de uma fotografia com flash dirigida aos olhos da criança, numa sala escurecida. O reflexo vermelho aparece no plano da pupila quando a luz é refletida pelo fundo ocular, que consiste num tecido altamente vascularizado e que se encontra sob a retina. Para que haja reflexo vermelho, a luz que se incide tem de atravessar os meios óticos (córnea, humor aquoso, cristalino e vítreo) sem ser obstruída.
Em crianças sem doenças oculares, o reflexo vermelho observa-se de forma simétrica, na cor e intensidade, nos dois olhos, e sem opacidades. Por outro lado, um reflexo branco pode ser justificado pela existência de uma cicatriz corneana, catarata total, persistência da circulação fetal, ou lesões retinianas graves, como toxocaríase ou um descolamento da retina. Alterações mais discretas do reflexo vermelho com apenas algumas sombras podem ser um único sinal de catarata. Deste modo, as alterações do reflexo vermelho não são exclusivamente provocadas pelas cataratas, mas são um sinal suspeito de doença ocular e devem motivar referenciação urgente a um oftalmologista.
Contudo, a acuidade visual é difícil de avaliar em crianças muito jovens, mas a incapacidade de fixar e seguir objetos com o olhar ou uma reação desproporcional à oclusão de um dos olhos (com choro e agitação marcada) são sinais de diminuição importante de visão. Por outro lado, a presença de estrabismo e nistagmos (movimento rápido, rítmico, involuntário e conjugado dos olhos), também podem sugerir diminuição importante de acuidade visual, estando ou não associados à presença de cataratas com indicação cirúrgica. A avaliação adequada de crianças muito jovens com suspeita de patologia ocular deve ser realizada sob anestesia, de forma a poder observar a presença, localização e tamanho das opacidades no cristalino, bem como todas as restantes estruturas oculares, incluindo a retina, de modo a excluir patologias concomitantes que comprometam a função visual.
Estratégia para recuperação
O tratamento cirúrgico deve ser proposto no caso das cataratas totais e em que as opacidades centrais/ posteriores comprometam a chegada da luz à área macular. A cirurgia de extração da catarata é tecnicamente mais difícil em crianças pelo menor tamanho do globo ocular, menor rigidez escleral e uma maior taxa de opacificação capsular, o que condiciona procedimentos cirúrgicos específicos. O cristalino opacificado pode ser substituído por uma lente artificial intraocular ou, se não for possível, a correção de dioptrias deve ser feita com óculos ou lentes de contacto.
Logo após a cirurgia é necessário iniciar rapidamente a reabilitação visual, procedendo à correção da graduação para longe e para perto. O prognóstico funcional é pior no caso das cataratas unilaterais, uma vez que mesmo corrigindo a graduação, a lente artificial/lente contacto ou os óculos não conseguem igualar a capacidade de focagem do cristalino do outro olho. Nestes casos, é comum utilizar algumas estratégias, como a oclusão do olho com melhor acuidade visual, durante umas horas por dia, de forma a estimular a recuperação funcional do córtex visual. Deste modo, o processo de reabilitação visual requer uma estreita colaboração entre os pais e a equipa médica, de forma a obter os melhores resultados funcionais.
Assim, uma deteção precoce das cataratas congénitas, uma cirurgia atempada nos casos de cataratas com interferência visual significativa, um seguimento pós cirúrgico apertado para controlo de inflamação e deteção de complicações, uma reabilitação visual para tratar a ambliopia e o seguimento das crianças ao longo da vida permitirão a obtenção de melhores resultados funcionais.
Ana Sofía Travassos
(Médica, Oftalmologista)
Saiba mais em: https://ccci.pt/cataratas-em-criancas-e-possivel/